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Mensagem: Mistérios de vida e ida - Cheguei. Não demorou muito e você também chegou. Apenas quatro anos e meio haviam passado. Quando soube da sua chegada levaram-me à Santa Casa para conhecê-lo. Vejo-o como naquele dia: um menino enorme, forte, deitado com os olhos fechados, curtindo o restinho do calor materno do útero. Não tinha a pressa dos tempos de agora em que as crianças já nascem de olhos abertos atentas aos movimentos em derredor. Estranhei um líquido avermelhado em volta dos seus olhos, mas disseram-me que era um remédio para protegê-los. Isso me acalmou. Quando os abriu, que olhos grandes, misteriosos, lindos! Olhos que conseguiram ver o mundo numa dimensão diferente da usual, harmonizada com a natureza. Contava que até os cachorros falavam com você. Que os entendia. E essa pureza e sensibilidade carregou consigo por toda a vida. Amava o verde, o frescor e o silencio do pé da serra. Sua juventude pode vivê-la nos anos sessenta, tempos de amor, paz, de sonhos ainda. Quantas vezes com seus amigos, o vi saindo de nossa casa, descendo a Rua General Carneiro e virando a curva logo abaixo em direção à serra do Mel. Chinelo de couro de três pontas, mochila com matula, violão e cantil nas costas, cabelos longos soltos ao vento curtindo a liberdade. Em volta de uma fogueira que amaciava a feijoada para o dia seguinte, tocavam e cantavam despreocupados. A vida era linda. Acima o céu estrelado e ao longe as luzes da cidade. Cabelos soltos ao vento... Custaram-lhe muitas reclamações do irmão mais velho que não entendia aquelas modernidades. Homem sério não usa cabelos assim!! Mas foi assim que você percorreu os caminhos da vida. De mochila nas costas algumas vezes pegou carona para Belo Horizonte, em caminhões e chegou maravilhado. Outros tempos! Sonhava atravessar esse Brasil apenas com a mochila e a Bandeira Nacional nas costas balançando ao vento e tendo à frente o mundo. “Sem lenço e sem documento...” só com o direito irreverente de ser, de sentir, de liberdade. Com o violão e os amigos percorreu a zona rural desse norte colhendo a essência do povo sertanejo através da sua música e sua dança. Depois com a tia Zezé (Zezé Colares) e os companheiros do Banzé nos apresentavam as músicas resgatadas e ornadas com trajes e instrumentos próprios. Quantas músicas e formas de ser perdidas por esses matos vocês trouxeram até nós. Era lindo vê-lo em trajes típicos, cantando, dançando: “ coça que coça, coça, coça coçação, vai coçar pra outras bandas deixa em paz meu coração.” (...) “ Ê... catopê! Do terno de São Benedito, do Terno de Nossa Senhora vem cantar agora, vem cantar agora...” Meu coração dizia que era o catopê mais lindo destas bandas, alto, elegante, voz forte. E como catopê, nos ternos das festas de agosto, pelas ruas cantou e dançou até a pouco tempo atrás acompanhado pelo seu filho Cyrano, catopezinho iniciado, e assessorados pela sua Flor que de fora os acompanhava nas andanças e festanças. Com o Banzé viveu tempos de antes projetando-os para o presente. Revivendo e difundindo nosso folclore. A mochila, com o tempo, teve que alternar com pastas e malas. Mas os cabelos longos, irreverentes para os fora do seu tempo e visão, permaneceu com você na maior parte de suas andanças: curso de Educação Física/UFMG/PREMEM, inicio dos anos setenta em B.H. e Corinto; curso de Direito na FUNM, em Montes Claros; Procurador Geral no INCRA, INSS. Não existia mais a sandália de couro de três pontas, nem a mochila. Os cabelos, algumas vezes, eram cortados por uns tempos, cedendo à pressão da nova vida, mas logo voltava, disfarçado num rabo de cavalo para as idas ao Fórum e aos encontros ”enternado” com os Juízes. As andanças, essas não cessaram. Estava no sangue que herdou do Capitão do Mato, nosso pai Cypriano, conforme o chamou em uma de suas canções. Atravessou Brasília.DF e foi aportar em Rondônia, nos escritórios do INCRA. Você dizia, num de seu poemas: “ Não que eu precisasse partir para bem longe. Que eu tivesse que ver de perto o sol vermelho da Bolívia” Não. Você só queria correr mundo como sempre. E voltou dizendo: “Eu não me entranhei nas matas Eu fugi das lamas dos igarapés, pela mesma razão: Por um povo que trás em si uma “ Flor” E onde as águas do seu regaço me trazem muita febre Me mata de saudades e solidão. E você veio buscar sua Flor para não morrer de saudade e solidão. Levou-a consigo para viver de amor. Com ela veio subindo pelo sul do Brasil, parou uns tempos em Floripa e subiu depois rumo às serras mineiras. Mais um tempo descansando e admirando Belo Horizonte. Dali, após colher seu pequenino fruto Cyrano, voltou finalmente para o sertão querido. E no regaço da Montes Claros nunca esquecida, por fim descansou de tantas caminhadas terrenas. Apesar das muitas andanças, suas e minhas, sempre estivemos ligados pelo amor fraterno, pelas cartas, por longas conversas ao telefone ou frente a frente. Às vezes ficávamos tempos sem nos encontrarmos, mas eu sabia que no seu peito sempre encontraria abrigo. E eu me sentia forte. Você foi meu companheiro na irmandade, contemporâneo de peraltice. Se saiamos juntos pela rua, com sua mão no meu ombro, eu deixava meia cidade morrendo de inveja. A nosso modo sabíamos que tínhamos um ao outro. Agora, mais uma vez você se foi. E desta vez em direção à casa do Pai. Conforta-me ter estado ao seu lado, a Flor e eu , suas “Marias” como as vezes brincava, nos momentos que antecederam sua partida. Deitado num quarto da Santa Casa, de repente abriu os olhos, olhou-me com um brilho maroto e disse: - Sonhei! - Sonhou com quem? perguntei. – Com seu pai, respondeu-me. - E o que ele lhe disse? perguntei novamente, já com o coração apertando como que intuindo. Respondeu alguma coisa que não entendi enquanto tentava num esforço enorme levantar-se. Com nossa ajuda e a do enfermeiro pôs-se de pé, deu poucos passos vacilantes e se soltou. Do corpo enorme a vida escapara. Aqueles olhos grandes, que chamaram minha atenção quando você nasceu, ficaram parados. Sem brilho. Fechou seu tempo. Entre nós, sua vida parou ali. Todos os esforços para reanimá-lo foram embalde. Você se foi, meu irmão. Certamente para abraçar nosso pai que já lhe acercava e que você disse ter visto pouco antes de partir. E juntamente com nossa mãe Ambrosina, o Sid, o Tarcísio, sobrinhos e amigos que lhe precederam seguir por novas andanças pelo céu sem fim. Deixa uma saudade sem tamanho doendo no nosso peito. Desta vez, Rubinho, você chegou primeiro aí. Mas pode esperar. Logo estaremos todos juntos rindo, cantando cirandas, dançando como os catopês. Fica em paz. Até breve, meu irmão.
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