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Mensagem: Cowboys de alfaiataria À primeira vista, parecia apenas o que aparentava ser: uma alfaiataria bem simples, no melhor estilo tradicional: um balcão na frente, de madeira, separando um salão de porte médio, duas máquinas singer modelo profissional - uma elétrica e outra de pedal – costurando em alta e baixa velocidade, operadas pelo mestre e hábeis oficiais. Sempre dando conta, com rara eficiência, de todos os serviços normais e anormais que fossem necessários ao bem vestir de uma extensa e fiel freguesia. Vivia-se um glorioso tempo, a profissão de alfaiate estava em alta no mercado: um ofício milenar, criar e elaborar roupas, à mão, não saía da moda. Mais que um ofício, uma arte, hoje, em fase de extinção, pelo crescimento desordenado e forçada industrialização - mal planejadas necessidades - que atropelam tudo que é bom para saciar a sede dos que só vêem vantagens na quantidade e maiores lucros, em desprezo ao bom-gosto e qualidade. Enfim... Tempos modernos. Pregava-se botões, consertava-se calças, camisas e blusões, sempre em dia com a moda de Londres e todo o resto da Europa na confecção de ternos de finos tecidos,da mais cara casimira inglesa ou linho italiano, os mais apreciados pelos mais favorecidos,em sua maioria, pecuaristas (fazendeiro rico, a canção popular já apregoava) numa região onde tudo se girava em torno de gado. No balcão, revistas nacionais e estrangeiras. Lembro-me - esparramadas em cima do balcão- da life e a indefectível taylor, esta, considerada a bíblia mundial do alfaiate. Ambas escritas em inglês ( a life tinha uma versão em espanhol), difícil para uns e impossível para outros, embora ali na alfaiataria ninguém ligasse : as fotos diziam tudo que se queria saber. A alternativa mais econômica era o amarelecido brim cáqui para os menos afortunados, os remediados que ainda queriam ficar ricos. Estes, em maior número, faziam fila nas compras e na prova de roupas, atendidos com o mesmo esmero e presteza pelo mestre, oficiais e assistentes. O resistente brim era o tecido mais requisitado: talvez pelo baixo e atrativo preço ou mesmo - sábia e praticamente- pela quase infinita durabilidade (se existia o jeans, ainda estava nos seus primórdios na América do Norte), mais adequado aos poeirentos caminhos de terra . O que poderia haver de tão bom e interessante no interior de uma alfaiataria, para deixar um garoto de oito, nove anos - diariamente, naquele intervalo após o término das aulas e a hora do almoço - ficar sentado num velho banco de aroeira nos fundos ,prestando atenção a tudo e a todos e se divertindo à larga, mais ainda do que ficar plantado na porta de “Ducho” trocando revistas em quadrinhos ou jogando” tapão” com figurinhas do sabonete Eucalol ou Balas América? Como se fosse um permanente festival de Cannes ou Gramado, ali dentro, o papo era um só: cinema. E numa especialidade que encantava qualquer criança da época: faroeste americano. Histórias de cowboys, tanto os personagens como os atores, índios célebres e não menos cavalos, como o famoso Trigger, de Roy Rogers e a égua Beleza, de Billy Elliott. Da cidade, algumas (raras) fofocas sociais e, de vez em quando, algum comentário sobre uma resenha ou resultado de uma partida de futebol. Cassimiro e Ateneu, seguido de Vasco e Flamengo. Tinham a preferência. Atlético e Cruzeiro era coisa de gente de Belo Horizonte. Quanto ao assunto principal, parecia que se estava num outro mundo, com todas aquelas figuras famosas sendo comentadas e esmiuçadas nas suas interpretações de verdadeiros e legendários machões, personagens conflitantes de um oeste americano bravio, cantado e decantado no mundo inteiro, no magnetismo de seus duelos ao por do sol, rapidez no saque dos revólveres e precisão na pontaria dos rifles “Winchester”, na eterna guerra e devastação de primitivas e inocentes nações indígenas. E foi assim em toda a América, tanto do norte, como Central, ou do Sul – os livros de história contam tudo, não há escapatória - embora, naquela época, muita gente acreditava ser uma posição politicamente correta. Quem matava mais índios era considerado herói e o povo aplaudia. Buffalo Bill, mais famoso e falado, era cortejado e fez fortunas anos depois em circos de cavalinhos. Onde ele está hoje? Tem que se perguntar p’ros os padres, seja crente ou não. Mas isso, como diz o outro , é outra história... E eu ficava ali, sentado, escutando, sem dar um pio, pois não queria perder nada. Certo oficial, um tanto diferente (acho que tinha um olho só) olhava de lado para enxergar a linha ser enfiada na agulha – usava um lindo dedal de prata trabalhada - volta e meia dava uma parada no que fazia e dizia: “ Esse Allan Ladd num tem jeito mesmo. Deu agora pra fazer filme policial e só vive apanhando. Outro dia,mesmo,um gangster mal encarado deu-lhe uma surra num beco cheio de latas de lixo, que se não fosse aquela lourinha que cuidou dele a noite inteira eu ia até tomar raiva do distinto. Porque não volta a fazer como em “Shane” dando porrada em todo o mundo e matando ,com facilidade, Jack Palance?”. Outro assistente, dos mais novos e entusiasmados, não se continha e entrava logo na conversa. Mais chegado em Gary Cooper, lembrava: “pois é com Guéuri (olha a intimidade)- nunca acontecia isso. Como Sargento York, matou e prendeu centenas de alemães, de índios nem se fala, até aqueles do Canadá, que andavam nus no gelo,sem se congelarem. Mas bom mesmo foi acabar com a raça daquele Lee Van Cleef ( tornou-se cowboy famoso em faroestes/ espaguetes italianos, anos mais tarde) e seus amigos em “Matar ou Morrer” e a realizar, ainda,a façanha de beijar na boca Grace Kelly. Será que comeu?...Antes do príncipe?”. Todo mundo ria e trocava olhares significativos (eu não atinava por que) e ficava esperando a opinião do mestre alfaiate, que a todos sempre ouvia com atenção e soltava sábias e ponderadas palavras sobre o mesmíssimo assunto, no decorrer do expediente. E, de leve, ele acabava sempre falando do mesmo artista: Randolph Scott, legendário personagem de filmes B, comerciais,para consumo fácil, mas de boa feitura. Para ele, o melhor, o mais macho e que nunca apanhou dos bandidos. Na cara, nem pensar. A prova estava naqueles repetidos e previsíveis filmes de baixo orçamento (em sua maioria, preto e branco) estreados no sábado à noite, antes do seriado começar. O Cine São Luís (para o grande mestre alfaiate, o templo mais sagrado da cinematografia) era por ele assiduamente frequentado, principalmente nos filmes de Randolph Scott. Lógico, deve-se esclarecer a bem da verdade: o bom Germano, o mais tradicional, simpático e conhecido porteiro de cinema da cidade, além de seu amigo era também um especial e querido freguês que sempre lhe franqueava, agradecido, o ingresso para sessão dos sábados á noite: lógico, também pela amizade e gratuitos/ sucessivos cerzimentos de roupas da família,principalmente nas amarrotadas e esgarçadas calças curtas de seus meninos,que viviam jogando pelada o dia inteiro no Larguinho do Rosário. - Randolph arrasa, sempre afirmava o mestre-alfaiate. - E, além disso, é educado e bonzinho - todos balançavam a cabeça, aprovando. -Só matava quando não tinha jeito. Contentava-se em desarmar o vilão com um tiro certeiro na mão. O revólver pulava longe. E aí, dia após dia, os comentários entusiasmados se multiplicavam e a orelha daqueles velhos personagens devem até ter coçado algum dia, tanto era o aumento e infinitas ramificações biográficas sobre suas carreiras. Mas, como tudo tem um porém... Um dia... O tal porém veio de um filho destes fregueses ricos que estudava nos Estados Unidos.O pai, orgulhoso, subia sempre a sua bola, sempre omitindo o som de erre aspirado do agá no início da palavra. - Arvardi, abria a boca, todo sorridente. -É lá que o menino estuda. As más línguas afirmavam que era uma escola de contabilidade nos arredores de Nova York. Bom também. O rapaz ficou uma manhã inteirinha provando e aguardando o finalmente de um terno de casimira inglesa para a formatura, que seria no fim de ano. Na espera, sentado no banco de aroeira, começou a folhear as revistas (pelo menos isso aprendeu em quatro anos de América) lia e falava em inglês fluente, constatado e garantido pelo professor Correinha, renomado professor do idioma de Shakespeare e ,nas horas vagas,funcionário do Banco do Brasil.Saudoso e querido colega. Uma especial reportagem, que todos no recinto, inclusive o mestre alfaiate, gostavam de ver e rever (várias fotos de Randolph Scott todo alegre e sorridente ao lado de Cary Grant numa casa de praia, ambos de calção de banho e desnudos da cintura prá cima) provocou uma irada reação no rapaz letrado. - Mas que pouca vergonha, dois homens erados destes, morando juntos e dizendo que as mulheres não estão com nada e nada se compara a sua felicidade atual de ser um casal morando sob o mesmo teto. Vê se pode? A estupefação do jovem (hoje em dia,com certeza, política e socialmente incorreta) ecoou nas quatro paredes do salão, as máquinas de costura pararam de matraquear e as linhas teimavam em não enfiar nas agulhas: o silêncio longo que se seguiu foi mais que sepulcral, se é que assim pode-se dizer. -Como é que é? Quase que em uníssono. Geral. Do mestre, do oficial e até de dois fregueses tradicionais, sempre ali, como eu. (E Zeca do Correio, já ia me esquecendo: foi ele quem me levou: acho que um irmão do saudoso Lazinho Pimenta era seu amigo e trabalhava lá. Realmente não me lembro dos nomes, muito tempo se passou, mais de cinqüenta anos e não estou com essa bola toda de memória que gostaria de ter. Talvez alguém possa esclarecer. Será bem-vindo) Incontinenti, todos vieram ver de perto e o futuro formando em contabilidade americana não se fez de rogado: traduzia alegremente, com sabedoria e fluência, palavra por palavra. E, como se fosse um prédio caindo,tijolo após tijolo, a reputação de machão de Randolph Scott, seguido de Cary Grant (que lá não tinha tanto prestígio assim) foi despencando,despencando até chegar ao rés-do-chão. Foi quando, mais que calmamente, o mestre alfaiate sentenciou: -Querem saber de uma coisa? Não se fala mais dele aqui. Não quero nem ouvir falar neste Randolph Scott ou seu belo amiguinho. - De hoje em diante só assistirei filmes de Gary Cooper e Rock Hudson! Naqueles idos de cinquenta e poucos, o galã Rock Hudson, forte e bonitão, começava a despontar em Hollywood como cowboy e galã super macho. Sempre com Dóris Day a tiracolo, à coté,como diria Lazinho... Abraço a todos. Flavio Pinto
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