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Mensagem: Jurados em S. Francisco (Para Geraldino Gonçalves Coelho, in memorian) O ano de 1986 começara a rolar. Estávamos como sempre no Big Burguer, bar-lanchonete de Marcos Antonini localizado no térreo do recém-inaugurado edifício Montes Claros. Dele também eram a tradicional e hoje - infelizmente - desfigurada Crystal e a Brunini, sorveteria do Quarteirão do Povo onde o maestro italiano Sergio Magnani - professor emérito do Conservatório Mineiro de Música e do nosso Lorenzo Fernandez - ficava horas a fio a anotar meditados apontamentos em sua caderneta de capa preta. Criava, ali, talvez detalhes de mais uma ópera. Mas não tomava sorvete, o maestro. Sorvia aos poucos a caipirinha especial que lhe mandava servir o patrício Antonini. Às quatro da tarde Marcão, como o chamávamos, deixava seus estabelecimentos do centro aos cuidados de empregados, dirigia-se ao apartamento do edifício Montes Claros, tomava banho e descia para o Big Burguer, seu xodó, aonde dizia não trabalhar. Isso mesmo, sentava-se com os amigos, nós, e comandava pedidos como se freguês fosse. Vez por outra ultrapassava o balcão, movido pela vontade de preparar um coquetel para uma amiga, o que fazia como ninguém, ou uma tábua de frios, inigualável. Bem, estávamos ali nas preliminares quando chega o Geraldino (Boutique) Coelho com uma grata missão a cumprir, encomendada pelo então prefeito de São Francisco, o popular Severino Gonçalves. Encarregado fora ele, Geraldino, de convidar os componentes para o júri das escolas de samba da agradável cidade ribeirinha. Acertara na mosca o prefeito, pois Geraldino, além de tarimbado carnavalesco nos seus tempos de Rio de Janeiro, comandara por anos a campeã das campeãs do Carnaval montesclarense, a Unidos do São João. Investia ele do próprio bolso na compra de caríssimos adereços, plumas, dourados e sedas em profusão, para que sua amada sociedade carnavalesca brilhasse nas ruas. - Cabaret, você vai julgar a bateria. - Eu, Gera? Só entendo de bateria de rock... - Que nada, você tem rítmo, isso é o que conta. Em verdade eu já tocara surdo, tamborim, agogô e sei lá mais o quê em blocos de praia em Salvador, daí não me sentir despreparado para o desafio. Geraldino tomou um gole, correu os olhos pela mesa e fulminou: - Fuso (assim ele apelidara Egídio), a comissão de frente é sua. - Mas eu gostaria de julgar evolução... - Humm, tudo bem... Garçom, anota aí: Egídio, comissão de frente e evolução. E justificou a escolha: - Fuso é carnavalesco nato, entende do babado, sabe de cor inúmeros sambas-enredo, já assistiu a dezenas de desfiles pela TV... Ninguém o contestou. E ele prosseguiu: - Dona Vanda fica com o samba-enredo e as fantasias masculinas. Todos aquiescemos. Vanda, sua mulher, cantara em rádios quando solteira e o acompanhara desde o Rio, sempre envolvida com carnavais. Quanto a julgar fantasias masculinas, trazia no curriculo ter participado de uma das equipes do campeão dos desfiles cariocas Carlos Bornay. - Marcão, você vai de porta-bandeira. E fica também com os passistas, pois estarei muito ocupado com os carros alegóricos e fantasias femininas. Kid Gole e Bebé My Friend - baiano porreta! - chegaram ao Big, tomaram assento, ficaram a par do assunto em tela, mas incubência nenhuma lhes foi oferecida por Geraldino: o corpo de jurados estava formado. Então fomos nós, dois dias depois, rumo a São Francisco, lá chegando por volta das dez da manhã do sábado de Carnaval. O bar mais simpático da orla nos acolheu. Avisado da presença dos ilustres jurados na cidade, Severino ordenou que dois cicerones ficassem à nossa disposição. Nada solicitamos aos gentis rapazes, pois do bar não arredamos pé. Sentaram e beberam conosco. Mas foram muito úteis ao nos informar sobre o Carnaval da cidade, notadamente sobre o desfile das escolas. Eram duas as agremiações, disso já sabíamos. Rivalidade extrema. Agressões mútuas. Simpatizantes eufóricos dispostos a tudo. Rapaz algum sequer brincava com moça pertencente à escola adversária... Tudo isso desconhecíamos. Sol no zênite, veio-nos a convocação para a peixada oferecida pela prefeitura. Seria o ágape a abertura oficial do Carnaval. Ali, num aprazível sítio à beira-rio, encontraram-se o mundo oficial e o carnavalesco da cidade. Hotel, cama, banho, bar. Mais à noite, clube. Total mordomia. Não nos deixavam comprar nem mesmo uma simples caixa de fósforos. ´Pudera, não cobramos cachê´, disse um dos nossos. No domingo fomos à praia, do outro lado do Velho Chico. Atravessa-se em canoa, água pelas bordas, mas tudo correu bem - remadores firmes e prudentes. Trazida pelo Geraldino, presidente do júri, nos alcançou na barraca a terrível notícia: não se poderia beber durante o desfile... Quatro horas, ou mais, a seco... Em pleno Carnaval! Marcão disse que não suportaria tamanha tortura. O que fazer? O júri foi instalado na carroceria de um caminhão decorado a rigor. Subia-se por uma escadinha, retirada a seguir. Distantes umas das outras carteiras de escola nos esperavam, com lápis, borracha, caneta e um envelope pardo contendo a papelada necessária aos trabalhos. Foliões, de olho em tudo, sem saber quem julgaria o quê. Ninguém, nem mesmo o prefeito, podia dos jurados se aproximar. Mas o garçom, sim, quando solicitado a servir refrigerante ou água mineral. Foi quando dei um grande gole pelo gargalo de uma Coca-Cola e a coisa quase volta que percebi: a coca fora batizada! Havia vodka ali! Quem bebia vodka? Egídio! Olhei para ele que, matreiro, educadamente se servira de um copo com gelo. Imitei-o incontinenti. Subornara o garçom, o safado! E lhe recomendara que não servisse daquelas inocentes garrafinhas a Geraldino e muito menos à dona Vanda. Nós outros bebemos e nos divertimos, intimamente, porque membro de júri deve deixar transparecer que é sério. Veio o desfile. As escolas, cada qual melhor que a outra. Lindas! Tudo perfeito, sincronizado, mas, ai!, a bateria da segunda atravessou. Atravessara? Não, bem, apenas um soluço, engasgou... Mas eu percebi. Eu e Marcão, pois trocamos olhares significativos. Como eu tinha dado nota 10,00 à outra escola nesse quesito, marquei 09,50 para a soluçante. Nada demais, fui justo. E dela só tirei meio ponto. Pois foi o que bastou. Quando da apuração final do resultado, a segunda agremiação a desfilar perdera por meio ponto. Lembrei-me da meia polegada a mais nos quadris, o que levara Marta Rocha a perder o título de Miss Universo... Evidentemente a escola perdedora não engoliu o resultado. Ninguém ou quase ninguém percebera a atravessada. Senti isso no clube, para onde fomos em seguida ao desfile. No banheiro um adolescente disse a outro algo como como tirar meu couro para dele fazer tambor... De volta à mesona do prefeito narrei o fato aos amigos. Todos ficaram preocupados. Ao largo olhares nos fuzilavam. Enquanto ali estivéssemos, quietinhos, apenas bebericando, decerto nada iria acontecer. Mas, e depois? Realmente, no clube não houve ameaças sérias, Fuso até dançou. Saimos do baile escoltados até o automóvel oficial da prefeitura. Uma viatura da polícia nos seguiu até o hotel, onde não dormimos. Assim que as ruas se acalmaram, toda a cidade a dormir, arribamos para Montes Claros. Nem do farto desjejum do hotel chegamos a provar.
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