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montesclaros.com - Ano 25 - sábado, 2 de novembro de 2024
 

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Mensagem: COISAS E CAUSOS DE GODOFREDO... Godofredo Guedes, dentre outras façanhas cometidas, pintou, aos 16 anos, os afrescos do teto da igreja da Lapa, BA. Afeiçoado de igual forma à música, aprendeu a ler e escrever partituras graças às cartilhas publicadas em sua época. Eu, mesmo com professora em tempo integral, desisti de aprender a ler e muito menos a escrever música. Violão, Godô já tocava de menino, embora o sonho fosse montar uma banda em sua pequena cidade natal, Riacho de Santana, também na Bahia. Esse desejo foi acentuado quando vivenciou a apresentação de uma euterpe de Salvador que teria ido a algum festejo oficial do município. Ele, que jamais vira um fagote ou clarineta, por esta apaixonou-se , pediu licença ao dono do instrumento, traçou-lhe a cópia exata em caderno e, semanas depois, aprendia a dominar a sua clarineta, sim, sua, pois feita por ele, com ébano da África e teclas, sapatilhas e palhetas mandadas vir do Rio de Janeiro. Montou então sua banda, para a qual compunha valsinhas e dobrados, com o irmão Pimpinha no banjo e outros amigos nos metais e percussão. Como pintor, elaborava algumas das tintas utilizadas na profissão. Em tempo: em Montes Claros fabricou um piano. Não dispondo de fundição, o chassi veio de São Paulo, bem como os pedais. Móvel e peças - teclas, martelos, cordas - manufaturados na oficina da rua Rui Barbosa. Estas últimas, as cordas, enroladas em bordão de aço numa máquina por ele criada e acionada a pedal de bicicleta. Zeca, seu filho, o encarregado de enrolá-las, uma a uma... Depois o mestre conferia o serviço, batendo com uma varinha nas cordas esticadas para experimentar-lhes a tensão. Ah, sim, inventou também um instrumento, semelhante a uma viola, ao qual denominou pentacórdio por dispor de cinco cordas. Compositor de inegável dom, caiu de amores por uma donzela, Beja, e, do alto das barrancas do São Francisco compôs ao violão, para ela, algumas de suas mais belas canções, dentre as quais a sublime Cantar. Esse caso de amor iria mudar a sua sina. Impedida pelos pais de namorar o não-tão-boêmio-assim músico e pintor, casa-se Beja com outro pretendente. Naquele tempo casava-se cedo e aos 21 Godofredo encontrou um novo amor, Júlia, com quem logo contraiu matrimônio. Mas, aí, não raras vezes trágica, a intervenção do destino: Beja enviuva alguns meses após o casamento. Godofredo, ja comprometido, não podia sequer tentar reatar a antiga paixão. Solução: mudar de cidade, no caso Monte Azul, MG. Beja, nunca mais a viu. Soube, anos depois, através de parentes, da sua mudança para São Paulo... Em Monte Azul, enquanto não lhe eram reconhecidas as artes de músico e pintor, emprega-se em farmácia de um parente. Aprende francês, em cartilhas, por conta do ofício: toda a farmacopeia de então era escrita na língua de Balzac. Fica ali pouco tempo. Em 1935/36, dois filhos a tiracolo - Terezinha e Zeca - muda-se com Júlia para Montes Claros, onde aluga casa na praça da Matriz. Na Princesa do Norte a vida passa a lhe sorrir mais docemente. Logo corre a notícia de um retratista na cidade e ele começa a pintar figuras locais. Além de suas telas clássicas, paisagens, pinta de tudo: letreiros em veículos, faixas, cartazes, placas de estabelecimentos comerciais. A registrar, sua caligrafia impecável, bonita de se ver. E não descuida da música: compõe, conserta instrumentos, afina pianos... Saxofonista papo amarelo, fundou conjunto musical de jazz que se apresentava no clube Montes Claros e no cassino Minas Gerais. Atacava de clarineta e sax nesse quinteto, idealizando uma big band à Glenn Miller, sonho não materializado por absoluta falta de talentos locais. Dona Júlia preocupava-se com as noitadas do marido no cassino. Não que Godô fosse chegado à bebida, mas temerosa do que lhe pudesse vir a acontecer, pois, volta e meia, tiros ecoavam no salão. Em um desses tiroteios, nosso herói fora obrigado a saltar para detrás de um piano. Das putas que pululavam no local, Julinha não ciumava. Do seu quarto de dormir ouvia a clarineta ou o sax do marido a pleno vapor. Se estava tocando não podia estar fazendo outra coisa, não é mesmo? E assim que findava o expediente do cassino, digamos assim, tinha o marido de volta a casa. Dos Guedes eu só conhecia a logomarca, GG, com a qual Godofredo assinava seus trabalhos. Aos 13/14 anos fiz amizade com Patão (Hélio) e Zeca (José), em Montes Claros e, quando fui estudar em Belo Horizonte, vim a conhecer Beto (Alberto), Godofredo, Júlia e os outros filhos. O casal mudara-se para a capital havia uns quatro anos. A família passou alguns apertos dada à precipitação da mudança, mas logo as encomendas foram surgindo e os Guedes se estabilizaram. Godô mantinha ateliê - que nomeava oficina - na rua Bernardo Guimarães, pouco abaixo da praça da Liberdade. A destacar em suas obras na capital do estado, o grandioso trabalho de restauração dos afrescos do teto da secretaria da Agricultura, que lhe rendeu e a Patão, seu ajudante, uns bons cobres. Quando ainda em Montes Claros, Godofredo foi ao Rio de Janeiro em busca de reconhecimento ao seu talento. Partituras na maleta. O máximo que conseguiu foi se apresentar com músicos de estúdio em programa vespertino da Rádio Nacional. Seu objetivo era outro: gravar um disco. Ari Barroso, diretor artístico da emissora, músico e compositor de renome (vide Aquarela do Brasil), embaçou-lhe o sonho: propôs simplesmente comprar, por dez réis-de-mel-coado, as músicas do artista. Desnecessário dizer da indignação de Godofredo e, até posso afirmar, talvez seja Ari o único humano de quem ele guardava mágoa. Sexo-agenário, Godô deu para namorador, ou melhor, galanteador. Nas feirinhas de arte, tanto em Beagá como em Moc, onde voltou a residir, paparicava as moçoilas, segurava-lhes as mãos nas suas, pregava-lhes bicotas nas bochechas. ´Gostei muito desse quadro´, dizia uma delas. ´Realmente é um trabalho sui generis (ou fora de série)´, respondia sempre a elogios do gênero. ´Quer que eu lhe retrate, meu bem? Passe na oficina, não precisa posar, leve uma foto, faço-lhe um precinho camarada...´ Fui testemunha ocular desses inocentes assédios e um deles devo revelar. Estava eu em sua oficina e entrei na casa - contígua - atraído pelo aroma dos bolos de Júlia. Ela os fazia às dúzias, Godô não comia pão. Mas só tomei um cafezinho e saí. Da oficina, ouvi pela janela: ´Mas, gente, o bolo ainda está quente, saindo fumaça, e já comeram a metade!´ Era a inconfundível voz de Júlia. Godofredo, que adentrara a cozinha, não titubeou: ´Haroldo saiu daqui agora...´ Ele sabia que comigo ela não ralhava. Quando de volta à oficina, disse a ele: ´Bonito, hein Godofredo, isso não se faz. E se eu te dedurar?´ Dedurar significava dizer à Júlia que ele levara a metade do bolo, envolto em papel de embrulho, para a loura que paquerava, comerciária das vizinhanças. Godofredo não bebia, não fumava, não comia pão, e só fazia suas refeições acompanhadas de garapa, fosse limonada, laranjada, umbuzada ou um suco qualquer: ´Cadê a garapa, Júlia?´ Quando havia vinho, não tinha dúvida: colocava dois, três dedos do néctar dos deuses em um copo, deitava água e açúcar e não raro misturava a garapa com uma perna dos óculos... Quando ia à feirinha de artes, aos domingos, ao sair da oficina mirava os sapatos. Sujos? Não tinha dúvida: se marrons, pintava-os de marrom; se pretos, tinta preta. Enfim, se o nosso GG pintou telas e letreiros por encomenda, no tocante à música, esta brotava dele. Andava distraído pelas ruas, ruminando ou assobiando alguma melodia, deixando notas pelo ar. E sucedeu que, em tenebrosa tarde abril de 1985, ao deixar o hospital aonde fora buscar uns exames, uma motocicleta o elevou aos céus, aos 77 anos, quando ainda trabalhava na oficina, tocava clarineta e violão e compunha suas inesquecíveis canções.

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