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Mensagem: DEODORINA Quando menino morria de medo de assombrações, mula sem cabeça, mãe d’água, curupira, lobisomem. Tinha até medo de virar um deles, já que sou descendente do famigerado Bicho da Carneira lá de Pedra Azul. Na Fazenda Ipueira, sem luz elétrica, as conversas, à beira do fogo antes de dormir, davam calafrios: alma penada, vampiros, fantasmas, espíritos malignos. Atemorizados, ouvíamos até o zurro da Mula Sem Cabeça. Hoje me pergunto: como ouvir o zurro se ela não tinha cabeça? Mas que zurrava, zurrava, pois eu ouvia e tremia nas calças. Cagaço maior era quando os mais velhos ameaçavam nos entregar para Sá Deodora. Bastava desobedecer em qualquer coisa, aprontar alguma, que logo vinha ameaça: - Só chamando Deodora para dar um jeito n`ocês. Sá Deodora era um mulherão de metro e oitenta, forte, taluda, braços grossos, mãos grandes e ásperas. Vestia saia até as canelas, lenço na cabeça, camisas sobrepostas em trapos. De pouca ou nenhuma conversa. Monossilábica. Vivia descalça, com os calcanhares rachados. Cobra sem peçonha esmagava a cabeça com o dedão do pé. Pegava qualquer serviço de homem: fazer cerca, roçar pasto, destocar roça, e não aceitava receber como mulher, o que era usual na época. Na lida, não amontoava com os outros, fazia sua tarefa apartada, talvez para mostrar o rendimento do seu serviço e comia sua marmita arredada. Retomava primeiro que os outros e era a ultima a largar o trabalho. Sua casa ficava no oposto das demais, numa grota, onde corria a ipueira ao fundo. Havia um folclore: se algum menino enxerido fosse vê-la tomar banho à noitinha, ela capava o moleque. Embora reservada, era prestativa. Apresentava-se para qualquer serviço. Era muito demandada para benzeções, rezas e simpatias. Curava quebrantos, mal olhados, espinhelas caídas e ventos virados. Uma vez, a mulher do vaqueiro estava parindo e o nascimento complicou, as parteiras, sem mais saber o que fazer, clamaram a presença de Sá Deodora. Ligeiro ela chegou arregaçando as mangas, piou os meninos, os fuxicos, mandou arredar os curiosos, lavou as mãos, benzeu-se e entrou casa a dentro em direção à parturiente. De lá, depois de um tempo, gritou rouca: - Tá encravado, mas com ajuda do minino Jesus Cristim, vamo dá um jeito. Ôces, muié, puxam uma reza para Nossa Senhora do Parto. Os home pra não ficá com cara de besta destelham a casa e abram as cancelas pra dar passagem pra criança nascer! Dito e feito, cancelas destrameladas, escancaradas e o telhado já pelo meio destelhado, naquela ladainha de “Virgem Santíssima, virgem antes do parto, virgem no parto e virgem depois do parto tal foi a obra do Espírito Santo que gerou em Vosso ventre o Esplendor do mundo ”, deu para ouvir o grito do moleque nascido. Sá Deodora nem esperou direito os agradecimentos, o Deus lhe pague, lavou os braços e as mãos ensanguentados, mandou dar canja para a parida, os peitos para a criança e sumiu no escuro do quintal. Cresci com medo de Deodora, mas, rapaz, o terror diminuiu, embora o respeito tenha continuado. Já na universidade, nas férias do meio do ano, festa de São Pedro, eu voltei, depois de muito tempo, à fazenda. Cheguei de tardinha, boca seca, açodado, comecei logo a tomar umas e outras à espera da habitual quadrilha e do animado forró. Quadrilha da roça mesmo, sem falsas fantasias e toscas maquiagens. Um sanfoneiro disposto e um animador porreta animam qualquer festa. E lá tinha dois dos bons. Sinfrônio punha os oito foles para gemer até soluçar e os gritos do popular Borreira endoidavam o povo: - Animação, gente, Anavam, Anarriê, Ó o pai da noiva, É mentira! Riliava com todo mundo, menos com Sá Deodora, que ficava apartada, sentada num toco, num canto mais escuro. Quieta, mas com o pesão batendo no ritmo da música. Finada a quadrilha, começou o acalorado forró. Todo mundo no terreiro. Poeirão no ar. Vendo aquela cena, aquele alegrião todo e só Deodora sem dançar, imaginei a vida inteira daquela mulher, só na labuta, sem homem, sem filhos, sem diversão e contentamento. Tomei mais umas duas, assumi coragem e falei para os que estavam do meu lado: - Vou chamar Sá Deodora para dançar! Assustados, dispararam, uníssonos: - Cê tá é doido? De estalo, sem vacilar, atravessei o vivaz aranzel. Parei à frente de Deodora e desfechei: - Vamo dançar, Sá? Ela parou, pensou, deu tempo para eu achar que ia levar uma taba, olhou dentro dos meus olhos e respondeu: - Vamo! Caminhamos para um canto com menos alvoroço, juntei ela devagar, lembrei-me do que tia Marlene tinha ensinado, quando menino, que mulher não gosta de dançar com homem com mão frouxa, firmei então aquele mulherão e caímos no forró. Não tinha intervalo de uma música para outra. A toada era direta. E lá íamos nós cada vez mais ousados, até que numa hora eu juntei a Sá Deodora com ânimo e percebi um negócio estranho. Colei a coxa e vi o trem armado. - Viche Maria! Assustado, recuei e falei: - Deodora? Ela firmou minha mão, apertou meu ombro e ruminou grosso: - Quieto, menino, vamo dançar que isto é meu “delema”.
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