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Mensagem: TUTUCA Tutuca chegou em Francisco Dumont no sábado, antes do Domingo de Ramos. Pretendia passar toda a Semana Santa na casa do seu amigo Camilo, o único médico da cidade. Mas deu com os burros nàgua, o doutor havia viajado para um congresso e esticado o feriado numa praia baiana. Casa trancada, empregada desencontrada, sem as chaves, sem onde empoleirar, o jeito foi hospedar na pensão do Seu Rosa e Dona Teresa. Como estava completamente duro, as diárias, as refeições e o invernado gole foram pendurados. A bem da verdade, o crédito foi concedido por sua amizade com o renomado médico. Enquanto esperava o retorno do Dr. Camilo para quitar suas contas, Tutuca valeu-se da sua simpatia e embromação. Era bom em desculpas e lorotas, quando regadas a muita cerveja e pinga curraleira. Todo “mêlete” tem o dom da simpatia. Com o passar dos dias, Seu Rosa, incitado por Dona Teresa, sugeriu que o hóspede fizesse um acerto, pois qualquer dinheiro ajudaria pagar os fornecedores, principalmente o distribuidor da Brahma. Tutuca, engasgado, desculpou-se alegando estar desprevenido naquele momento, embora estivesse no aguardo de uma ordem de pagamento. Todavia, por precaução e com medo do Dr. Camilo demorar, debreou na cerveja, mas não aliviou na aguardente. Acordava amarrotado, arrumava o cabelinho que não via água há muito tempo e com poucas palavras ia direto para o bar da pensão. Tomava apenas um café preto, refugava o pão, o leite e a margarina. No esquentar da manhã, os recém-conhecidos iam chegando e empoleirando, formando o escrete do gole, até que o mais corajoso ou o mais trêmulo solicitava a primeira, uma pequenininha para esquentar a tripa ou para curar o resfriado. Os compartes, solidários, o acompanhavam. Daí em diante, a roda só aumentava. O pudor etílico era relevado, o riso afrouxava e a vozearia retumbava. O tema de sempre era a vida alheia, os velhos causos e o anedotário repetido. Um alegrião esfuziante. Bêbados, já se tratavam pelos apelidos, na maior intimidade: Pé de Cana, Fogo Eterno, Manguaça, Buteco, Dose Dupla, Copo Furado... O almoço era trocado por esporádicos tira-gostos para segurar a onda. Sério mesmo era o gole fechado, o dia inteirinho. Se algum pedia algum belisca, vinha logo a gozação: “começão feroz, cachaça necas.” Ao final da tarde, os bebuns, sorrateiros, com medo das patroas, iam escapulindo de volta para suas casas. Tutuca, já sem companhia, jantava pouquinho e se arrastava para quarto. Apagava antes da novela. Dia seguinte, de volta à remoída rotina, gole em cima de gole, causos e piadas requentadas, gargalhadas estridentes e a conta da pensão e do bar cada vez mais alta. No torpor, a turma desconhecia trabalho, obrigações e ignorava por completo os preparativos para a procissão do “Senhor Morto”. Dona Teresa, coordenadora há anos do figurino da procissão, zelava, lavava e passava as roupas de todas as personagens: da tanga de Jesus Cristo às suntuosas vestes de Pôncio Pilatos. Entretido e dedicado ao gole, Tutuca também não percebeu que a cidade silenciosa se vestia, se transformava. Ruas pintadas, janelas ornamentadas e rendadas, cruzes e santos cobertos de alfaias roxas, cavalos desarreados, tudo e todos devotados ao desfile do Santíssimo. Na sexta-feira, Dona Teresa acordou espevitada, tinha que distribuir as roupas engomadas aos compenetrados atores. A cada entrega, alertava sobre o horário impreterível da largada, às 3 horas da tarde, na porta da Matriz. Iam subir até o posto de gasolina e desceriam a rua paralela até a casa de Sócrates Dumont, de onde retornariam à praça da igreja. Infelizmente, Dona Teresa foi informada, de manhã, que o padeiro não poderia mais ser o São José, pois tinha viajado na véspera, às pressas, para São Paulo, devido à doença da patroa. Deus Misericordioso, quem será o substituto, o pai de Jesus? Todos os católicos conhecidos já estavam escalados e paramentados. Pedir a um crente para ser santo, nem pensar. Cruz Credo! Tesconjuro! Ao passar pelo boteco, encontrou a solução: Iria intimar o Tutuca, amigo do Dr. Camilo, para fazer o papel. - Mas, Dona Teresa, eu? Nunca fiz nem pai de noiva em quadrilha, quanto mais ser logo o São José? - Tem que ser você, Tutuca. Não tem outro. Você só precisa parar de beber até a hora da procissão. Promete? Tutuca, no curé, parou, pensou no mico que teria de pagar, mas como negar alguma coisa à Dona Teresa? Estava na sua pensão há uma semana, bebendo, comendo e dormindo, sem um tostão para pagar a conta. E se ela o acochasse na cobrança? O jeito era capitular. - Tá bom, Dona Teresa, a senhora me avise na hora. - Olha, menino, procissão é coisa séria e o seu papel é dos mais importantes e destacados. Bom mesmo é você afastar da bebida. Deus castiga! Tutuca continuou no bar, calado, figurante, sem muita potoca. Escondeu o copo na prateleira do balcão e passou a tomar suas talagadas na moita. Taludas, mas espaçadas, para não dar na vista. Ás duas e meia, a dona da pensão, apressada, avisou-o: - Sua vestimenta está passada e engomada em cima da sua cama. Tá na hora de vesti-la. Daqui a pouquinho passo lá no quarto pra checar se está tudo direitinho. Tutuca se levantou do banco, tonteou, segurou no balcão, firmou as pernas, tomou o resto do copo e saiu apalpando o corredor até o seu quarto. Lá chegando, deparou com aquele vestidão franciscano, esticado na cama, um cinto de corda e uma sandália trançada, à romana. De porrete, sentou, pensou em desistir e a moleza o fez deitar para um cochilo. Não passou minutos, Dona Teresa já chegou dando choque: - Tutuca, Tutuca, levanta, veste logo a túnica, a procissão já tá para sair: um, dois e já! Não teve jeito, levantou, tirou a roupa, ficou de cueca, vestiu com dificuldade aquele manto marrom e logo entrou Dona Teresa para dar-lhe o arremate. - Quieto, deixa eu dar o laço no seu cinto. - Firma o pé para eu amarrar suas sandálias. Tutuca só soluçava, hic-hic, não estava se agüentando em pé. Boca seca, precisava tomar mais uma. Nem que fosse uma pequetita. Dona Teresa, aprumando-o, o pôs para fora do quarto e na saída arrancou-lhe os óculos e o relógio, dizendo: - Naquele tempo, não usavam estes trens, não! Se já estava tudo anuviado com a bebida, imagina agora sem óculos. Tutuca estava perdidinho da silva. Trôpego e cego. Foi guiado, a passos lentos, da pensão, que ficava numa esquina, até a quadra diagonal, mais acima, onde a Matriz sobressaia. Chegando lá, escorou na porta da Igreja e, se não fosse o medo que tinha de Dona Teresa, teria escorregado até sentar na escadaria. Ás 3 horas em ponto, sinos tocados, tilintados, estava a cidade inteira dividida pelos dois meio-fios da rua. Na ala da frente, São José balangandã, num porre só. “Quando Jesus passar, quando Jesus passar, quando Jesus passar, quero estar no meu lugar.” No meio daquela cantoria e rezação, Tutuca balançava, galeava pro meio da rua e um menino o puxava de volta pro canto do meio-fio. Tutuca, puto, dava um coque na criança. Tropeçava de novo, o menino o aprumava. Outro coque e mais um pé na bunda do guri. E aí foi aquela rinha, um trupicão, uma puxada na saia, um tapa na cabeça da criança. O menino chorava, mas não largava, punha São José na linha. E recebia outro tabefe. Rompido apenas um quarteirão, Dona Teresa, vestida de Ana, mãe de Nossa Senhora, largou sua posição e deu um basta naquela briga. - Pelo amor de Deus, Tutuca, deixe de implicância, não faz isso com o menino, não. Ele é Jesus Cristim e tem de andar do ladinho do pai dele, São José!
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