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Mensagem: NOTURNO NÚMERO DOIS* Iara Tribuzzi A única mulher de família que pôs os pés na Coréia, rua da zona boêmia de Salinas, e em plena madrugada, foi minha Vó Milota. Mesmo assim por engano e também porque não sabia dar corda no relógio de carrilhão do Vô Adelino. Ou talvez soubesse, mas era idosa para subir num banco e alcançar o tal relógio, lá no alto da parede da sala de visitas. Sua viuvez era recente, depois de sessenta anos casada com o homem mais cordato da cidade. Ao perder o companheiro, passou a ser tutelada pelo único filho homem, bem menos cordato que Vovô, mas atento ao dever de zelar pela mãe. Sua primeira providência foi mandar buscar uma das muitas afilhadas de Vovó, mocinha educada e gentil, para acompanhá-la. Do alto dos seus setenta e quatro anos, Vó Milota era vivaz e muito bem disposta. Vivia a fazer biscoitos e doces, costurava sempre, e recebia, aos sábados, suas comadres e compadres que vinham da roça. Servia-lhes uma merenda e lia para todos o que achava interessante no Almanaque do Santuário de Nossa Senhora Aparecida. Sempre me impressionou seu extremo cuidado com grávidas e parturientes. Apesar da rotina atribulada, tirava um dos dias da semana, com chuva ou sol causticante para subir ao Morro do Capim e ensinar os cuidados com o parto e com recém-nascidos. Recomendava, sobretudo, que no resguardo as parturientes fossem preservadas de sustos e de contrariedades, que lhes poderiam causar grande mal. Numa das muitas noites de insônia, madrugada escura como breu, aconteceu com Vovó o inusitado. Não havia réstia de luz e nenhum luar. Ela sacudiu a afilhada Venerita, que resmungou não ser a hora de acordarem, porque ainda estava morta de sono. Vó Milota retrucou: - Que nada! Os galos já amiudaram o canto, já amanhece! - Mas, madrinha, aparteou Venerita, está escuro demais. Não enxergo nadinha. - Pois vá buscar um lampião, acenda o fogo e passe um café. Estremunhada de sono, a pobre moça fez o que lhe pedira Vó Milota. Vestidas e arrumadas, saíram rua afora, rumo à capela do Colégio das irmãs, lá no alto, perto do Morro do Capim. Seguiram pela rua da Baixinha, subiram em direção à casa paroquial e alcançaram a rua do cinema. Venerita ponderava que estava tudo muito estranho. Não se via viv’alma. - Madrinha, Madrinha, esta hora pode estar errada. - Que nada, fique quieta. Estamos quase chegando. Em silêncio, na escuridão total, continuavam ladeira acima mesmo vislumbrando, ao longe, pálidas luzinhas móveis, de lanternas de mão. Venerita apavorou-se. Não seriam ´visagens´? De braços dados, subiam a rua Padre Salustiano, e quando passavam entre o Cine Teatro Salinas e a Igreja Presbiteriana, aconteceu um despropósito. Totalmente imersas na escuridão, andando devagar, amedrontadas, atentas aos sons da noite, ouviram, de repente, um piado triste da corujinha caburé que morava na torre da Matriz. Ao longe, um sapo coaxou em resposta, uma gata vadia miou, descontrolada, enquanto um vira-latas bobo latia para o nada. Acima do Morro do Capim uma chuva de estrelas, como brasas cadentes, riscou o negrume da noite. - ´Virge Nossa´! Que esparrame agourento, pensou Venerita, mais alarmada ainda. Preocupadas, nem perceberam que as luzinhas distantes se aproximavam, e alguém perguntou a Vovó: - Madrinha, que aconteceu? Aonde vai, a esta hora? - Vamos assistir à missa no colégio das irmãs. - Mas o colégio ficou para trás e aqui não é lugar para a Senhora. Estamos na ´Coréia´. O rapaz, seu sobrinho, ofereceu-lhe o braço, deram meia-volta, e marcharam ladeira abaixo, em silêncio; Vó Milota emburrada, o moço ressabiado pela flagrante esbórnia e Venerita muito transtornada. - E agora, madrinha? Se souberem que estive na ´Coréia´ nem casamento arranjo. - E alguém precisa saber? Só se você mesma contar. - Mas madrinha, falei com a senhora que aquele canto do galo era canto enganoso, não de dia amanhecendo. Diz o povo que galo quando canta fora de hora tem moça fugindo para casar. Vovó passou-lhe um olhar de reprovação, mas, no escuro, ela não viu. Sentiu apenas a dor do apertão no braço, e ficou quieta. Calados, todos voltaram para casa, o moço se despediu e Vó Milota, para disfarçar o engano, deitou-se novamente. Antes de pegar no sono disse pra si mesma: - Vai ver que esse galo velho endoidou de vez, melhor fazermos dele uma farofa. Belo Horizonte, sem data.
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