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montesclaros.com - Ano 25 - sábado, 16 de novembro de 2024
 

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Mensagem: SESSENTA E QUATRO Éramos uma ninhada, escadinha de sete crianças de 4 a 11 anos. Mamãe tinha 34 anos e Papai cinco a mais. Ela vivia por conta da gente e ele por conta de tudo quanto havia no planeta: política, reformas, eleições, medicina, construções, futebol, cinemas, fazenda, frigorífico, pedreira, curtume, imprensa, etecetera e tal. O Brasil era uma efervescência e Marão era um alka-seltzer naquele burburinho todo. Vivia viajando a BH, Rio, Brasília e pelo circuito de seus cinemas no norte de minas. Só o víamos alguns dias na semana, entrando ou saindo, e mesmo assim acompanhado de um monte de amigos, companheiros, correligionários e curiosos. Chegava com aquela turba toda, cobrando almoços, lanches, jantares, pra já: - Maria, frita mais bifes, põe água no feijão, o pessoal tá com fome! Partimos amanhã cedo para o Distrito Federal. Darcy vai nos receber para aprovar umas escolas profissionais para nossa região. Meu pai não dormia nem bebia naquela época, porque não dava tempo, o agito e a pressa eram demais para mudar, passar o país a limpo. Dava pitaco em tudo, falava pelos cotovelos, tinha idéias e soluções para todos os problemas do Brasil. Defendia apaixonadamente a educação de qualidade, uma saúde plural e básica e propagava que a terra improdutiva tinha que frutificar. Após as refeições, ao agradecer sempre dizia: - Senhor, dai pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão. Nos punha no colo e dizia aos amigos: - Este menino come três a cinco refeições ao dia, tem toda a assistência de saúde, tem uma cama, um teto, uma mãe formada em pedagogia e uma escola boa. Ou seja, tem todo apoio familiar e público para se tornar um cidadão decente e prestante. Chegou o momento de lutarmos para dar mais às outras crianças que estão desamparadas, famintas e sem estudo. É esta a revolução que temos que fazer. Por isso, a premência das reformas de base. Porém, a revolução que veio foi outra: o golpe de 64. Primeiro de abril! O Mario Ribeiro barulhento, inquieto, teve de se calar, recolher, entocar, sumir. Graças ao providencial aviso de tia Lourdes Pimenta: - Jacy, o compadre tem de sair da cidade agora, imediatamente... Ele se escondeu por uns bons tempos na fazenda Rio do Peixe de tio João Valle Maurício, fugido dos “bate-paus”. Nossa casa esvaziou. Ficamos meses sozinhos, com as portas e janelas cerradas. Não podíamos brincar na rua, mesmo sendo ermo o bairro Todos os Santos naquela época. Fomos limitados ao nosso umbigo, ao nosso quintal. Pat, Fred, Marquim e eu íamos juntinhos para a escola e voltávamos cercados pela garotada nos xingando: “comunistas”, “comunistas”. Crueldade de crianças. Reflexo do que escutavam dos pais em casa. Não me lembro de temer aquele xingatório todo, estava blindado pelos esclarecimentos de mamãe. Tinha apenas receio dos meninos, que eram tantos e tão irados, baterem em Pat e nos meus irmãos. Minha mãe conta que um dia a minha professora do grupo D. João Pimenta me levou até a minha casa e lhe contou com lágrimas nos olhos: - Estou lhe trazendo Ucho porque os meninos o estavam ameaçando e xingando de comunista. Ele disse que não era e nem sabia o que era comunista. Um deles o acusou: Se seu pai é comunista, você também é! Seu filho, então, respondeu: - Olha, se meu pai é comunista deve ser coisa boa. Eu também sou! À noite, depois de rezarmos e pedirmos a Deus proteção ao papai, ficávamos todos embolados no quarto de minha mãe. Além de Mauricinho, Toninho Rebello ia diariamente lá em casa: - Comadre, está tudo bem? Vocês estão precisando de alguma coisa? Os meninos estão bem? Recebeu a feira que eu mandei? Precisa de dinheiro? Qualquer coisa mande me avisar! Fique tranqüila, eles não vão encontrar o Mário. Marcolina manda lembranças e está rezando por vocês. A feira de Toninho foi tão farta, que comemos goiabada e gelatina durante anos. Tinha tanta comida na despensa que eu pensei: - meu Pai não volta nunca mais. Mozart Caldeira era o outro grande amigo que aparecia para ajudar. Mas a minha impressão era de que ele tinha tanto receio de pegarem meu pai, que passava um pouquinho da sua tensão e medo pra gente. Enquanto uns poucos foram solidários, outros tantos estavam no encalço de Mário Ribeiro. Há pouco tempo soube que alguns foram até a fazenda de Tio Maurício devido a suspeita dele estar lá escondido. Ao chegarem nos arredores, Lafayete, ex-supervisor da Escola Normal, se ofereceu para ir sozinho na frente, com o seguinte argumento: - Pessoal, como o Mário e seus comparsas devem estar armados e sendo eu o único solteiro, sem filhos, creio que devo ir até lá na sede para fazer uma prévia checagem. Foi, viu Marão e Maurício na maior prosa, voltou e disse aos seus compartes: - Não foi desta vez, lá não tem uma viva alma, tudo apagado. Podemos voltar. Minha mãe nunca pode agradecê-lo, quando soube deste ato de estima o Lafayete já havia falecido. Lembro que mamãe, antes do golpe, alfabetizava adultos pelo método Paulo Freire na nossa casa, à noite. No meio daqueles alunos tão humildes havia uma senhora, mãe de uma dentista. Ela era nossa vizinha, mais velha, boa pessoa, e estava toda contente porque já começava a juntar as letrinhas. O golpe a fez sumir lá de casa. Nunca mais apareceu e passou a não nos cumprimentar. Para muitos passamos a ser leprosos sociais. Por sorte éramos tantos, sete crianças e mais mamãe, a cozinheira Joana e suas duas filhas, Detinha e Dui, que nos bastávamos no quintalzão imenso. Não esqueço da alegria de tio Enio. Esteve presente o tempo todo. Dormia no sofá da sala. Distraia-nos com suas brincadeiras e dava segurança à sua irmã Cici. Creio que foi este casulo familiar que nos manteve e nos mantém tão unidos até hoje. Nossa casa ficava afastada da cidade, no bairro Todos os Santos, em frente onde hoje é o Skema Kente. O campo do Cassimiro não tinha nem muro direito. Éramos nós, o orfanato e mais cinco ou seis vizinhos espalhados numa manga sem ruas. A ponte para o bairro que cruzava o rio Vieiras é aquela passarela na Sanitária que liga o Sesc ao Posto Via Dupla. O resto era uma estradinha estreita que passava pela nossa porta e ia até o Pequi de Joanir. Ao entardecer, eu ia para o quarto de Joana escutar no radio a novela “Gerônimo, Herói do Sertão, e o Moleque Saci” e ficava atemorizado. Imaginava e sentia o aperto que os meus heróis passavam ao serem perseguidos e encurralados, que devia ser o mesmo que o meu pai sentia. Torcia calado para que o Gerônimo escapasse e encontrasse Marão. Iria protegê-lo. Na santa e obrigatória missa do domingo, íamos empoleirados no carro, chegávamos juntinhos e voltávamos todos grudadinhos para casa. Se não fossemos à missa, a acusação seria implacável: são mesmo ateus e comunistas de carteirinha. Depois do Ofertório, na hora da Consagração, quando o padre levantava a hóstia e depois o cálice, mamãe pedia para a gente dizer com toda a fé do mundo: - Meu Senhor e Meu Deus, protegei Papai! Passado um tempo, que não sei dizer quanto, em uma noite ele apareceu. Foi a maior alegria silenciosa. Não podíamos falar alto, fazer barulho ou arruaças, para não alardear vizinhos e bisbilhoteiros. As únicas luzes acesas foram as do fundo da casa, da cozinha. Matamos a saudade e a curiosidade, mas fomos dormir cedo, pois antes de clarear o dia um carro buscou meu pai com peruca e barba e o levou para Bocaiúva. Lá, ele tomou o trem e desceu em Sete Lagoas, de onde seguiu noutro carro para Belo Horizonte. As estações e rodoviárias eram vigiadas, um risco para os “perigosos comunistas”. Na Capital, ficou escondido num pequeno apartamento, sob a guarda e proteção de tia Nini, irmã de mamãe, e de tio Ruy, seu marido. Fico a imaginar como ele, que vivia ligado a 220 volts, cercado de gente por todos os lados e sem parar quieto um minuto, conseguiu suportar o isolamento, sem família, sem amigos, sem notícias, sem atender o telefone. Estava só. Enjaulado. Minha tia conta que, quando tocava a campainha, ele escondia dentro de um guarda-roupa. Sei apenas que depois de muito tempo, toda a família foi de Kombi, no maior mistério, recebê-lo em Bocaiúva. Veio sem a peruca e a barba. A viagem foi a maior algazarra e alegria, parecia o retorno de um herói combatente de guerra. De volta a Montes Claros, Papai se recolheu, restringiu suas atividades aos seus negócios de cinemas e ao consultório. Bico calado. O mar não estava para peixe. Para nós, os filhos, foi bom. Passamos a ter um pai mais presente em casa. E que Pai!

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