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montesclaros.com - Ano 25 - segunda-feira, 18 de novembro de 2024
 

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Mensagem: REENCONTRO COM O PASSADO Por que, meu Deus, só depois de tantos anos estava eu ali, aos pés daquele que me salvara a vida? Acreditar, com Nietzsche, que tudo sucede verdadeiramente como deveria suceder? Mas não era hora de Nietzsche. No momento, cabia-me exatamente negar o fatalismo, agradecendo a graça concedida pelo Senhor Bom Jesus de Matozinho. Cresci sabendo que lhe devia a vida, pois, com pouco mais de um ano, desenganada pelos três médicos da cidade, naquela época, fui curada, depois da promessa feita por meu pai de levar-me ao Santuário do Bom Jesus do Matozinho, com uma oferta de cera correspondente ao meu peso. Quanta coisa, porém, acontece na vida de cada um, para desviar-lhe dos propósitos e promessas feitas! Como os ´descaminhos dos caminhos´ nos levam a outros rumos! Os anos passaram-se. Não digo quantos nem como me transformei no decorrer deles. Mas o desejo de cumprir a promessa do meu pai permaneceu. Por sentimentalismo, ou porque não se pode arrancar do peito todas as raízes das sementes ali germinadas, demorei muito a realizá-lo, sim, por negligência ou porque só agora ´deveria suceder´. Mas realizava-o, finalmente. Ajoelhada, chorava pelos meus mortos e pelo que morrera dentro de mim. E agradeci. Agradeci mil vezes ao Cristo crucificado, representado naquela imagem. Crença, superstição, fé medieval, mito? Para que negar tudo naquela hora de reencontro? Por que não crer no mistério, nos desígnios de uma vontade criadora, do Deus que não tem passado da sua onisciência, fluir a vida de cada um, os fatos sucedendo-se como deveriam suceder? Leta, de oitenta e quatro anos, e Nininha de oitenta, assustaram-se com a visita fora de hora, mas ao saber de quem se tratava, tudo mudou. Era como se estivessem me esperando naquela hora. Abraçando-me muitas vezes, Nininha reclamava porque demorara tanto a chegar. Deixara que envelhecêssemos, quando me esperava menina e ela moça. Eu não tinha justificativa, e mais me entristecia por ter perdido tempo que me daria alegrias maiores. E ainda havia mais coisas para reclamar. Exatamente quando me dispusera a visitar a terra de meu pai, lá não encontrava o tio Adalberto que, tendo morado em Montes Claros, me vira nascer e crescer e também me esperava desde que para lá retornara. E o primo Frei Henrique, que não se esquece de você, que não sai daqui de casa, dizia Nininha, que alegria teria em vê-la e levá-la por toda parte. E Leta entrava na conversa: ´Ferreira foi um grande poeta´. Isto ela repetia sempre, sabendo que me agradava. Com o destino de ser gauche na vida, como Drummond, já previra que, por mais alegrias que eu tivesse no passeio, teria também tristezas. Em tudo há de ter desencontro, uma pedra. O melhor era esquecer. Esquecer para lembrar o que procurava. A presença do meu pai ali onde nascera e vivera até vinte e seis anos, menino ou rapaz andando pelas ruas de Conceição do Mato Dentro, fazendo serenatas naquela Praça da Saudade, onde fica a ´Chacrinha´, e onde ficava a casa de vovô Bernardino - Teté músico, carpinteiro, sapateiro, coletor, sei mais o que - e de vovó Guilhermina. Ela eu conhecera, minha grande amiga, que também morou muitos anos em Montes Claros. Só depois de passada a emoção e desabafo tiveram olhos para o Santuário. Eram quase vinte e uma horas e o sacristão, um preto já idoso, que nos abrira a porta, fez as explicações, em um bom português. Construído em 1935, o atual Santuário substitui o primitivo, conservando-se, porém, quase integralmente, o altar onde se encontra a imagem do Cristo Crucificado, em tamanho natural, vinda de Portugal em 1773, e venerada como Senhor Bom Jesus do Matozinho. Perguntei pela antiga imagem que a lenda conta ter sido encontrada por um escravo, num capão de mato, que dera origem ao culto do Bom Jesus. ´Ah! Imagem viva, as que aparecem em um lugar por vontade própria, vão para Roma´. Conversa encerrada, reparei melhor na beleza do barroco, contrastando com o estilo mourisco do Santuário. O trono não tem degraus. A cruz com o Cristo ocupa toda a sua altura e, aos seus pés, as imagens de Maria Santíssima, Madalena e João Evangelista completam o quadro do Calvário, que uma luz difusa e branca e a altitude e expressão das figuras dão a impressão de cena viva, parada por instantes no tempo e no espaço. Altares, laterais, murais representando cenas bíblicas, vitrais aumentam a beleza do templo. Na fachada, de cada lado da torre, uma reprodução da ´Pietá´, de Miguel Ângelo. O segundo encontro com o passado deu-se pouco depois, na ´Chacrinha´. A ´Fonte da Saudade´ (que bela é a sua história narrada pelo escritor Joaquim Ribeiro Costa no livro Conceição do Mato Dentro, Fonte da Saudade) fica dentro da pitoresca ´Chacrinha´, à frente da casa. E Leta: ´Sua mãe brincou nesta fonte, quando veio aqui nos conhecer. Era uma criança. E tão linda´. Com a memória falhando, repetia as informações. Insistia em falar de tio Carlos, que ninguém sabe se está vivo. Mas Nininha ia desfiando o passado, lúcida, inteligente, expressiva. Era a Nininha que eu aprendera a amar, através do meu pai. No dia seguinte, mais lépida do que eu, levou-nos pela cidade. Subimos e descemos ruas, conhecemos parentes, eu e o mano Lívio, meu companheiro de viagem: Utsh, Ferreira, Oliveira, por toda parte. E a cidade inteira sabe quem é a ´menina´. Nininha, quem é o tio Adalberto e Frei Henrique, pois não é ele o ´Seu Vigário´? Cidade pequena e antiga, como todas as da época do ciclo do ouro, é Conceição, cidade culta, do melhor festival de música e de uma porcentagem insignificante de analfabetos. Deixava-a com saudades, depois de mais uma vez ter subido a colina do Matozinho para despedir-me do senhor Bom Jesus e de Frei Agatângelo, tão gentil havia sido conosco. Mas estava aprendido o caminho. Apesar das curvas perigosas da serra do Cipó, voltarei para, mais uma vez, sentir um passado que não vivi, mas que amo profundamente, por ser das minhas raízes.

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