Minha Dr. Santos
2ª parte - Da D. Pedro II a Padre Augusto O miolo do mundo era a Dr. Santos. A cidade acontecia naqueles poucos quarteirões que ligavam as praças Coronel Ribeiro a Dr. Carlos. Tudo: negócios, empréstimos, fuxicos, catiras, elogios e desacatos, sucedia e arrematava naquele corredor de lojas, casas, consultórios, bares, pensões, botecos e mercado. Havia até dois jornais que pulavam miúdo para registrar todo o burburinho que efervescia naquela veia urbana e em suas adjacências. Os passeios sempre foram estreitos para o trança-trança. Como existia pouco movimento de carros, as pessoas utilizavam também a rua pavimentada com paralelepípedos para transitar num tumultuado e calmo ir e vir. Era o umbigo do mundo. De lá, escapando por ruas e becos podia-se encontrar estradas que se esticavam até as distantes Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador. A esquina da D. Pedro II era das mais badaladas. Um fervedouro. Lembro-me das algazarras nas matinês de domingo no Cine Fátima. Ficávamos na fila do ingresso ou transitando, espiando, assuntando. Quando parados, escorávamos um pé nas paredes que ladeavam os passeios, fingindo ser gente grande, maço de minister no bolso, à espera da paquera, da sorte de um flerte relâmpago com a menina dos nossos sonhos. A rapaziada mais nova, de olho na portaria do cinema, trocava revistinhas e gibis, à espreita de um vacilo do comissário. O mais ferrenho era o Gaguinho. Inflexível, barrava sem dó a medrosa molecada, amontoada, a cuspir, a se contorcer, despistando e tomando coragem para enfrentar aqueles três degraus intransponíveis à sala escura. Lá dentro, o útero seguro de diversão garantida – aventuras, romances e sonhos. Eram imagens e sons que nos deliciavam e nos transportavam para além do nosso arraial. Recordo de Marão, radiante, ao conferir o gordo borderô e falando para o nosso tio e contador Otávio Silveira: “Titavo, Titavo, cinema é o melhor negócio do mundo! A gente vende sombra, fantasias, à vista. À vistinha! Dinheiro na frente. E as pessoas saem do cinema, felizes da vida, prenhes de emoções. Só levam sentimentos e imagens na memória. Se não gostarem da fita, falam mal do diretor e dos atores. Não têm a quem reclamar.” Abaixo da Sorveteria e Lanchonete “A Cubana”, descendo a Dr. Santos, no mesmo passeio esquerdo, se apresentava a JB Lançamentos, onde João Batista - Lelas - todo arrumadinho, de passos curtos, lançava moda. Calça boca de sino, cinto com medalhão na altura do umbigo, camisa de manga dobrada, sapato com bico quadrado e sola alta. Na capa. Os preços da roupa, o olho da cara. Proibitivos. Os pais, munhecas, só soltavam o dinheiro do cinema para os filhos. Entre os passantes e circulantes desocupados deparávamos com personagens diversos, como Manoel Quatrocentos. Este não era doido nem tolo, ele que nos fazia de bobo com as suas ferradas. Pequeno, pernas curtas, ombro largo, carregava um inseparável machado. Fazia alguns serviços de lenhador nos quintais das casas. Usava sempre calça e camisa de mangas compridas, coloridas, sempre limpas. Se déssemos assunto, bravatava com desdém que conheceu e se enamorou nas antigas com Sophia Loren, Brigitte Bardot e Grace Kelly. Era lento no andar, mas ligeiro no falar e infalível no bote. Certa vez, junto com outros curiosos, estava eu debaixo da marquise das Lojas Macedo, a assistir a fixação de uma placa de propaganda, quando chegou manso e sorridente o Mané Quatrocentos. De repente, esquivou-se dando um pulo para trás como se a placa estivesse caindo. Ao darmos também um salto de banda, acompanhando o seu reflexo, disparou o seu famoso e certeiro “olalaica!”. Fomos fisgados mais uma vez. A loja de Waldir Macedo(1) era a Ricardo Eletro daqueles tempos, comercializava de tudo, bicicletas, radiolas, discos, ferros de passar, o escambau a quatro. Interessante é que a venda era feita sem pressa, educada e respeitosamente, um negócio de compadres. Não se usava cheques, nem cartões de crédito, tudo era anotado no caderninho do fiado. Em seguida, havia a Casa Eli, sapataria espelhada, moderna, do elegante e há muito pernambucano Zumba, casado com Nívea. A loja era gerenciada pelo educado e zeloso Brivaldo, que conhecia pelo nome todos os clientes, os seus gostos e preferências. No final de uma longa escada, o apartamento onde moravam as meninas ditas como as mais bonitas de Montes Claros: Rita, Eliana e Janice(2). Coladinho no prédio da sapataria era a residência de Levindo Dias e Nenzinha(3), que foi comprada de Antônio de Oliveira Fraga. Na minha lembrança, salvo engano, a casa tinha um muro baixo, com elementos vazados, como uns vazinhos furados, que protegiam um pequeno jardim com grama e algumas roseiras. Junto havia o escritório de advocacia de Arnaldo Benício Dias Ataíde e do saudoso Afonso Brant Maia. Pelas memórias enevoadas, por ali também havia uma casa amarela de Davis. Nos dois cômodos da frente estava o seu escritório de contabilidade e nos demais, ao fundo, as dependências da sua casa. Talvez, em tempos distintos, este lugar tenha sido também o mesmo local de trabalho dos conceituados advogados. Tenho também recordações que registram o consultório dentário do Dr. Sebastião Moreira, casado com a paisagista Josefina Mendonça(4). Marcante era o equipado Foto Pinto, de José Figueiredo Pinto(5), especialista nos álbuns de casamento e de família. Um verdadeiro estúdio. Exímio maquiador fotográfico, com as mãos e seus lápis afiadíssimos corrigia as feiúras do povo. Era o photoshop da época. Onde andará o valioso arquivo de fotografias e negativos do Seu Pinto, registro da nossa longínqua Montes Claros que apaga a cada dia das nossas memórias? Talvez, o ex-combatente Izar, que comprou o Foto Pinto e o manteve no mesmo lugar por algum tempo tenha este arquivo. O pessoal do Instituto Histórico de Montes Claros deveria fazer uma pesquisa para localizar essas fotos. Outro fotografo das antigas, bom de foco e detentor de um belo e copioso arquivo é o José Gonçalves de Oliveira, o famoso Zé Cabecete. Ele teve loja na rua Simeão Ribeiro e por muito tempo na rua Dom Pedro II, em frente ao Hotel Monterey. Pesquisadores de plantão, Seu José é pai da bela Luzia Magna e de Fabio Marçal, fotógrafo oficial da prefeitura. Portanto, saiam em busca deles e de suas relíquias fotográficas. Tampouco se esqueçam de pesquisar os arquivos do Foto Facela, que alguns dizem ter funcionado por algum tempo no prédio de Zumba na Dr. Santos. Acima do Foto Pinto, no segundo andar do prédio, era o NAE – Núcleo de Assistência Empresarial, que tinha como diretor Fábio Borém Pimenta. Luiz Tadeu Leite, radialista, recém-formado em direito, cheio de ideais e sonhos, era o apressado e articulado relações públicas(6). No verão de 1975, durante as férias, fui estagiário daquele acalorado escritório de economia e planejamento. Ficava a ler projetos e estudos econômicos da região e de Montes Claros. Vivíamos o milagre econômico e a época das verbas fáceis da Sudene. Mas eu gostava mesmo era da hora do café da tarde, pão quentinho da Padaria Santo Antônio, manteiguinha Alvorada, leite, café, muitas vezes queijo e a prosa animada, salpicada de política e futebol. Alguns amigos me alertaram da existência, naquele passeio esquerdo, da Farmácia Real, do famoso e agitado Zé Costa(7). Rememoro, ademais, da Casa Coelho, de fachada azul, especializada em móveis, de Gabriel Cohen, que tinha o Vicente Rocha como gerente. Viva igualmente na minha memória era a Jóias Palladium, onde uma moça muito bonita, me fazia passar devagar pelo passeio e dar uma olhadela rápida e acanhada, a fim de filar alguma formosura. Ela causava inveja às jóias. Salvador, pai de Hebert Pezão, chegou a trabalhar lá. A loja ficava bem em frente ao Jornal de Montes Claros. Passeio abaixo estava a padaria Santo Antônio, da família Souto, produtora da gostosura do pão alemão. Lá, comi meu primeiro pudim, depois de uma visita ao Jornal de Montes Claros. Folclórico era a figura de Adão Padeiro na sua charrete ou em sua bicicleta cargueira. Saia pela cidade, de casa em casa, a buzinar e a entregar o famoso pão ainda quentinho. A meninada encolerizava-o ao gritar: - “Viií Adão”. Grudado à padaria, havia um beco fino de uns 10 ou mais metros, com paredes descascadas, reboco à mostra, dando passagem para um pequeno largo, com piso de brita, onde funcionava uma fabriqueta de carimbos e uma gráfica já meio ultrapassada, que produzia basicamente volantes e panfletos. Creio que lá, antes, ficava o depósito de lenha que alimentava os fornos da panificadora. Barulhenta era a Loja Americana, de Dizinho Bessa, casado com Anilda, professora de português do Colégio Agrícola(8). Vendia de tudo, vitrolas, radiolas, rádios, discos fogões e geladeiras. Na esquina, no final do quarteirão, chegando à Padre Augusto, pousava o prédio do Banco de Minas Gerais - BMG. No segundo andar, residia o gerente João Damásio e sua família. Posteriormente, uma nova agência do Banco Real, antigo Banco da Lavoura, instalou-se naquele ponto, com toda a sua trupe(9). De lá, temos causos prá mais de metro, só falta o José Aluízio Pinto por no papel. Findo o quarteirão, do outro lado da rua, espelhava outro Banco, o Comércio e Indústria, do gerente Armando Costa. Eu conhecia mesmo era a família do sub-gerente, Calixto, casado com Tiana, pais de Estefânia e do encapetado Bardo. Todos, juntamente com o menino Zezinho, habitavam o apartamento localizado no segundo andar. À noite, a curta escadaria do banco, de uns cinco degraus, se enchia de moleques pré-adolescentes. Ficávamos a jogar conversa fora, a fumar, mascar chicletes, arreliar uns aos outros e a tramar algum mal feito. Os mais velhos da gang eram Nei e Breno Aranha. Este já era dark àquela época. Os mais novos, Rayu Christoff e Bardo, não menos traquinos e imaginativos. Subindo de volta a rua, o próximo imóvel, onde hoje há um portão de ferro, era a Agência Chevrolet, de Lourenço Santana(10), que residia no apartamento no piso de cima. Ao fundo da revendedora havia uma enorme oficina com saída para a Padre Augusto(11). Onde atualmente está a Caixa Econômica Federal fora uma área ocupada por uma vila, um cartório e o Jornal de Montes Claros. Passeio arriba, se estabelecia a vila onde moravam Alberto Laborne Vale, pai de Cléa Márcia, casada com Haroldo Filpi, e Altamiro Guimarães, pai de Alba, casada com Humberto Souza Lima. A família Vale era dona do cartório. Parece-me que lá também funcionou uma antiga copiadora. Bem, mas o que me vem mais forte à lembrança é “O Jornal Monsclaro di hooooje” que era aconchegado à vila. O jornal era um pouco recuado e a vila se prolongava. Lembro-me de uma vez que eu, menino, estava com Marão a comprar o jornal quentinho, recém rodado, quando ele mostrou-me o canto de Tuia e mais abaixo a projeção da vila num lusco-fusco cenário da lua cheia fazendo companhia à torre da Catedral. Sem entender sua admiração e demora, perguntei: “O que é, Pai?” Ele disse: “Poesia, meu filho!” A entrada do jornal não dava para a Dr. Santos, era lateral. Antes havia o escritório de advocacia de Orestes Barbosa(12). Lembro-me dele toldado pela perfumada fumaça do seu cachimbo. Sinto o doce cheiro achocolatado. A recepção do jornal era uma sala com pintura envelhecida, piso de tacos surrados, uma mesinha, poucas cadeiras, máquina de escrever de teclas gastas. Não me recordo de quadros nem de ninguém especificamente, a não ser do meu sempre sério padrinho Oswaldo Antunes. A redação e a gráfica ficavam do lado oposto. Trago na memória o barulho das máquinas e da montagem dos textos feita com o ajuntamento dos ferrinhos de chumbo organizados em dezenas de caixas quadradas de letrinhas. Ouço o sonoro barulho deles, quando agrupados ou descartados pelo homem que vestia as palavras. O curioso é que ele, Meira, escrevia as frases de trás pra frente. Ao lado do jornal, num recuado, fora do alpendre, ficava uma casinha de madeira cheia de tralhas, papéis e panos. Tuia morava ali. Segundo André Antunes, filho do dono e meu colega do São José, os funcionários do jornal enchiam as paredes de madeira de fotos de mulheres bonitas em poses sensuais para época – páginas retiradas das revistas Manchete e Cruzeiro. Uma curiosidade e mistério para nós meninos. Tuia baseava-se ali mesmo no Jornal, mas às vezes andava pela Dr. Santos, lento, curvado, mascando fumo, com uma chupeta de bebê pendurada ao pescoço. Comovia-me a história de que ele era um ex-escravo. Se falasse “Tuia é bonzinho” ele sorria, se dissesse “Tuia é feio” ele levantava a bengala como fosse bater em alguém. Quando pequenos, lá em casa, deixamos de chupar bico devido ao infalível argumento de mamãe: “Tuia pegou seu bico, só você indo lá pedir para ele”. E o medo? “O Mais Lido” tratava de assuntos basicamente locais e regionais. Lutava veementemente pelo asfaltamento da estrada para BH, pela melhoria da energia elétrica de nossa cidade, pela industrialização da nossa região. Era um jornal atento, severo, combativo em defesa dos interesses de Montes Claros e do norte de Minas. Sob a maestria de Waldir Sena Batista, foi a escola de grandes jornalistas, que obtiveram êxito e respeito nas redações dos grandes jornais brasileiros. Para vocês terem uma idéia, entre 1960 e 1965, o JMC tinha os seguintes “focas aprendizes”: Robson Costa, Berguinho Spíndola, Flávio e Nilo Pinto, Lazinho Pimenta e Paulinho Narciso. Parece um escrete, ou não? Na grata e finda lembrança, resta a imagem de inocentes meninos a gritarem pelas ruas o eterno “Monsclaro di hooooje.” Acima do Jornal, do mesmo lado, onde é hoje a My House, havia um sobrado, um pequeno palacete para a época, a casa de Alpheu Gonçalves de Quadros e de Helena Prates(13). Dr. Alpheu, entre eleições e nomeações, foi três vezes escolhido prefeito de nossa terra, em 1942, 1947 e 1955. Depois, foi vice-prefeito de Toninho Rebello entre 1967 a 1970. No mesmo passeio, subindo, havia a garagem de GG que fazia parte do grande terreno da casa de Fabiano Peres, conhecido por Cica Peres(14). Este imóvel foi subdividido em diversas lojas. Tinha o folclórico e carnavalesco Geraldino Coelho que trouxe a primeira boutique para a cidade. Depois, a Ótica Lessa do magrelo e falante Edmilson e a Loja de Walcy Macedo, pai de Fernando Peito de Aço, que vendia bicicletas. Mais acima a Andréa Calçados de Ruy Pinto, culto e bom de papo. Leitor diário do Jornal do Brasil e atualizadíssimo com o que ocorria em Montes Claros e no mundo. Ruy faz uma imensa falta, principalmente nos papos do Café Galo. Finalmente, a casa de esquina na Dom Pedro II, de Juca Froés, casado com Conceição Lima, irmã de Gregória de Seu Dé. Seu Juca é pai de Marina, que casou com Wandaik Wanderley.
Meus amigos, triste é passar pelo centro de Montes Claros e perceber que a nossa Rua Dr. Santos existe apenas nas nossas efêmeras e finadas memórias.
Ao cabo, minha gratidão às assistentes e essenciais memórias de André Antunes, Bartola, Carlão Meira, Haroldo Tourinho, Fabio Marçal, Luiza Magna, José Gonçalves de Oliveira, Nilo Pinto, Robson de Quadros Figueiredo e Tadeu Leite.
(1) Pai de Waldizinho, Fernando, Flaucy, Flávio, Fábio, Gera, Cláudio e Áurea. (2) Zezinho, Toninho e Dão, meninos, completavam a família. (3) Pais de Arnaldo, Soninha, Chicão, Aldinha, Geralda e César (Bulei). (4) Pais de Darlan, Olavo, Aline, Adriano e Robledo, todos residentes na Avenida Francisco Sá. (5) Casado com Kita Sá, pai da colunista social Márcia Sá e de Fernando Kita. (6) Os outros dedicados funcionários do NAE eram: Armênio Veloso, Rocha, Jorge Ferreira, Gilson Coimbra, Carlos Alberto Maia e Adão. (7) Casado com Dona Bernadete, pai de Luiz Fernando Costa, de Jara, Soraia e Kátia. (8) Pais de Waldir, Patrícia e Margareth Bessa. (9) Funcionários do Banco Real: Boyzinho, Bichara, José Aluízio Pinto, José Marques Caldeira, José Messias Castro Brito, Odair Dangelis, Dario Avelino Pereira, Alvimar e Cesário Rocha. (10) Casado com Zelita, pai de Osmane (Binha) e Lamberto Oliveira Santana. (11) O chefe da oficina era Dida; Pedro Aragão, o gerente da casa de peças e Barlolomeu Lincoln, o popular Bartola, era o office boy. (12) Casado com Iede e pai de Ruy, Toninho e Maria Helena. (13) Pais de Sônia e Suzana Quadros. (14) Casado com Helena Froés, pai de Fabiano, Omar, Sônia, Teresinha de Bento Campos e outros.
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